Dissertação mostra nefasta reestruturação em bancos e luta dos bancários
A realidade vivida pelos bancários no período de 1992 a 2002 foi profundamente investigada pelo filósofo, e agora mestre pela Universidade de Brasília (UnB), Marcelo Siqueira Guilherme. Por mais de dois anos, ele trabalhou na dissertação intitulada ‘Ser ou estar bancário? A reestruturação produtiva e suas consequências para os bancários e o movimento sindical bancário’. A apresentação da dissertação ocorreu na UnB, no dia 12 de julho, e contou com a presença do sindicalista bancário e doutor em literatura brasileira na banca examinadora André Nepomuceno.
A socióloga doutora pela UnB Silvia Cristina Yannoulas e a doutora em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Sandra Oliveira Teixeira também compuseram a comissão examinadora. O orientador do mestrado foi o professor doutor em Política Social pela UnB Evilásio da Silva Salvador. A dissertação foi defendida no Programa de Pós-Graduação em Política Social da UnB.
André esteve envolvido ativamente como militante bancário durante o período resgatado por Marcelo Siqueira. Já foi secretário-geral do Sindicato dos Bancários de Brasília e atualmente é diretor da Federação dos Trabalhadores em Empresas de Crédito do Centro Norte (Fetec-CN/CUT).
“Pude viver por dentro, junto com tantas companheiras e companheiros, toda essa reforma no setor bancário, que foi travestida como eficiente, mas na verdade tem saldo nefasto ao trabalhador. O período neoliberal exigiu, inclusive, muita resistência, democracia e inovação do movimento sindical para que a luta dos trabalhadores fosse mantida até os dias de hoje. O Sindicato inovou com a atuação ligada à participação ativa em causas da cidadania e ênfase em políticas de saúde no trabalho, entre tantas outras”, destacou.
Neoliberalismo
Um dos pontos ressaltados na tese foi o padrão de trabalho imposto aos bancários pelo modelo neoliberal implementado no país durante os governos de Fernando Collor de Melo (1990-1992) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). A partir desses anos, o trabalho no setor financeiro foi mais oprimido pelos modismos perversos das ‘reestruturações produtivas’, pela automatização tecnológica e de condicionamento de processos, e os bancários passaram a trabalhar como vendedores dessas empresas, descaracterizando a profissão, além do aumento e da intensidade da jornada de trabalho.
A dissertação observou que a reforma do setor bancário obrigou o trabalhador a ser polivalente no exercício das atividades. Essa obrigação era expressa ou imposta sutilmente com uma política de cobrança de desempenho. Essa situação criou um bancário mais individualista, em boa parte devido à competição instigada pelos empregadores. Por outro lado, aumentou muito a sua suscetibilidade ao adoecimento, seja por patologias conhecidas, seja por síndromes de múltiplos fatores, levando ao progressivo esgotamento físico e mental.
O mestre Marcelo alerta que o resultado desse cenário foi uma rotina estressante de trabalho, com intensificação de metas, estímulo exagerado da competitividade e destruição de um ambiente solidário no trabalho. “O bancário perdeu sua identidade após esse período e começou a viver em um fingimento de convivência em comunidade, já que os bancos estimulavam a competição de modo individual e feroz”, concluiu Marcelo.
Adoecimento
Marcelo Siqueira argumenta ainda que o modelo de trabalho utilizado no período analisado aumentou exponencialmente o adoecimento físico e psíquico para bancárias e bancários. Essa situação teve por consequência uma forte tendência à desestruturação subjetiva, ou seja, à perda de sua identidade e de seu horizonte de atuação, prejudicando também o sentido de seu ser enquanto trabalhador, cidadão e pessoa.
Outro ponto destacado durante o período citado foi à privatização de diversos bancos no país. A partir de 1994, mais de 30 bancos estatais foram vendidos ou liquidados. O Sindicato dos Bancários de Brasília também atuou ativamente em campanhas e mobilização junto com a categoria para impedir a privatização, patrimonial e nos métodos de gestão, de várias instituições, como o Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e o Banco de Brasília (BRB). Além disso, a entidade travou o combate aos abusos dentro dos bancos privados, onde a pressão predomina, agravada com a covardia da demissão menos regrada.
Vida de bancário
Marcelo também sentiu na pele o sofrimento de ser bancário durante a modernização tecnocrática e rentista das instituições financeiras no Brasil. Nos anos 90, ele foi funcionário de um banco privado durante quatro anos em Vitória (ES). Passou por vários momentos de forte tensão, pressão para o atingimento de metas e vivenciou o adoecimento de vários colegas de trabalho. Além disso, chegou a ser demitido e recontratado por um salário menor como terceirizado para trabalhar na mesma empresa.
Dados da dissertação constataram a intensa onda de demissões iniciada nos anos 80. Marcelo apurou que os postos de trabalho nos bancos diminuíram 51,6%, de 1986 até 2000.
A experiência como bancário foi inspiração para Marcelo desenvolver a dissertação de mestrado. Ele conversou com vários bancários da época retratada e com funcionários da atualidade, e percebeu que a situação não melhorou desde a década de 80. Diversos bancários reclamaram da falta de valorização, mais cobrança por qualificação profissional sem retorno da empresa, sobrecarga de trabalho e adoecimentos psicológicos e físicos.
Metas
A dissertação também observou que houve o aumento das metas de produtividade e escolaridade, mas que não ocorreu um crescimento dos salários em contrapartida a essas cobranças.
“Durante esses períodos de mudanças no ambiente de trabalho dos bancários, os sindicatos tiveram que ir além da pura luta por reivindicações de remuneração para a categoria. Tiveram que montar estratégias para unir os bancários na mobilização, que passou a dar mais importância para questões como condições de trabalho e melhorias na saúde”, afirmou o filósofo.
André Nepomuceno resumiu que a dissertação é uma importante pesquisa ao organizar dados que qualificam o alerta sobre as mazelas que os bancários sofreram, e ainda sofrem. Mostra também que a maioria dos bancários está a cada dia sob ameaça da perda de sua identidade e de sua integridade. Isso ocorre devido à violência organizacional travestida do mito da eficiência a qualquer custo, aumento da automatização e pressão pelo super desempenho, muitas vezes sobre-humano, como se fosse natural, o que, se aceito sem questionamento, leva ao fim da autonomia no ambiente de trabalho, seja da pessoa, seja dos grupos e equipes, impondo o vazio da robotização e o arbítrio da hierarquia predatória.
Importância dos bancários e bancárias de Brasília
O Sindicato dos Bancários de Brasília, estudado especificamente em todo um capítulo, foi destacado na dissertação como entidade que se manteve firme na luta pela valorização dos bancários, tendo uma atuação líder na criação e na execução de novas estratégias sindicais, coladas à vida cotidiana da categoria. A instituição teve papel fundamental na organização dos trabalhadores do setor, que adoeciam cada vez mais, enfrentavam ondas de privatização e tiveram a cobrança por resultados aumentada, sem as contrapartidas minimamente devidas pela indústria financeira.
Foi um marco diferenciador a filiação do Sindicato à Central Única dos Trabalhadores (CUT), proposta pela então oposição (Alternativa Bancária) e aprovada em concorrida assembleia geral em 1991, em contraste com a discordância da diretoria sindical à época.
Entre as bandeiras cutistas, estava em destaque a OLT (organização no local de trabalho), como maneira de horizontalizar a atuação por meio dos delegados sindicais, fazendo o Sindicato se aproximar e se identificar com a vida e as demandas cotidianas, colado ao conjunto da categoria, com voz ativa nas mobilizações e negociações.
Conforme a pesquisa, o autor ressalta que a partir da diretoria eleita em 1992, sob a presidência da hoje deputada federal bancária Erika Kokay (PT-DF), também reeleita como presidenta na diretoria de 1995 a 1998, deu-se a abertura dos horizontes de atuação da entidade, com novas concepções e práticas para o sindicalismo bancário e ações conectadas para a construção de uma sociedade mais igualitária.
Impeachment
A participação do Sindicato na Campanha Contra a Fome idealizada pelo sociólogo Herbert de Souza (Betinho) e no movimento de impeachment do presidente Collor de Mello, bem como uma pauta extensa de debates culturais, artísticos e políticos, são exemplos dessas ações sociais que a entidade promoveu. As ações tiveram amplo apoio do conjunto da categoria bancária, como novas formas de enfrentar os anos mais duros dos ataques privatizantes, na sociedade e dentro dos bancos, que, literalmente, levaram ao suicídio dezenas de colegas, pela pressão extenuante e criminosa no ambiente de trabalho.
A conclusão da dissertação mostra que a solução para os problemas vividos pelos bancários desde a década de 80, e agravados na de 90, caminha pelo entendimento mais consciente do grau de ataques que sofrem contra a sua dignidade e das táticas de dividir usadas pelos bancos, como apostar na falsa diferenciação entre comissionados e não-comissionados, novos e antigos, competentes e incompetentes, estáveis e instáveis, discriminações e preconceitos, etc.
Fica demonstrada, também para os dias de hoje, a importância de valorizar a atuação coletiva e solidária no ambiente de trabalho, bem como a participação nas lutas com o Sindicato, para manter a saúde e o humor, resistir, conquistar melhorias e avanços para os trabalhadores do ramo financeiro.
Todos esses são fatores esclarecedores para a dúvida, que muitas vezes leva ao sofrimento, como consequência do dualismo entre ser ou estar bancário.
A dissertação de Marcelo Siqueira é uma contribuição valiosa para compreender e buscar resolver essa questão mais sob o prisma do trabalhador, e menos como ponto frágil para exploração pelo capital financeiro.
O Sindicato disponibilizará a íntegra da dissertação, com autorização do autor, após a entrega da versão final para a UnB.
Fonte: Seeb Brasília